Parte III - A Mulher De Trás Da Mesa
Um dia estranho. Um domingo sem graça. Lívia sabia que não podia continuar assim. Já haviam se passado dois meses desde a última vez que vira o rosto de Marcos. Ela precisava convencer-se de que outra pessoa poderia substituí-lo e, quem sabe, superá-lo. Mas não era fácil deixar essa idéia vencer sua mente cheia de passado.
Marcos foi, sem risco de dúvidas, o melhor desde que Lívia iniciara sua carreira na empresa. O único que entendia o que ela precisava e fazia sempre exatamente o requerido. Competência e bom humor eram características que dificilmente vinham juntas num mesmo estagiário. Mentes confusas, indecisões e atrasos eram comuns, mas Marcos parecia voar acima dessas intempéries da juventude. Para Lívia, ele era insubstituível.
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Ela pegou a foto daquele dia e, olhando fixamente para o rosto dele, deixou escapar lágrimas e soluços. Ele não. Ele não. Fora num domingo como aquele, sessenta dias atrás, que Marcos saiu da confraternização do setor para não voltar mais. Sabotagem pura, Lívia tinha certeza. O carro de Marcos capotou e levou consigo uma vida de sucesso. Ela levantou rapidamente e pegou um copo de suco na cozinha. Olhou pela janela e deixou o olhar descansar por uns segundos. Já chega! Ela parou aquele choro todo. Amanhã será o dia das entrevistas e alguém vai aparecer, alguém com vontade como Marcos.
Dia seguinte. Segunda-feira. Vestiu-se de preto como um sinal, inconsciente, de luto. Sentou-se atrás daquela enorme mesa de madeira clara, cheirinho de novo na sala. Um, dois, três, cinco, sete candidatos e nada. Até que Pedro Porter entrou na sala. Bem vestido, olhar seguro. Era ele, de alguma forma Lívia sabia que era ele. Encarou-o para ver se raptava alguma informação ainda no olhar. Fale de você, disse ela. E lá veio a resposta, inesperada! Defeitos! Ele disse trazer defeitos, mas trouxe também persistência com um tom de bom humor incrível. Quem era ele? Tantas respostas comuns até aquele momento e de repente algo original.
Desde que iniciara na empresa, o chefe a ensinara a seguir padrões e protocolos. Lívia sabia que essa era a política da empresa, nada que fosse muito ousado deveria cruzar as portas de entrada, ele dizia ser muito perigoso. Ela sempre soube que o patrão tinha medo de novidades e preferia agarrar-se ao tradicionalismo, a última ousadia que ele arriscara fazer custara-lhe o divórcio e a ausência dos filhos. Por isso também ninguém questionava o "mesmismo" da empresa e o "siga as regras", afinal de contas, apesar de tudo, ainda estavam no ranking de melhor empresa da região.
Lívia olhou mais uma vez para Pedro e sentiu um arrepio pela ousadia das palavras que estava ouvindo. Passou-se um filme na cabeça dela, como seria ter alguém assim naquela empresa? Ele acabaria mudando algumas coisas, questionaria os métodos, com certeza. Isso poderia ser um grande problema, mas também poderia ser a solução! Ela estava cansada de não arriscar, de não tentar, de não errar. Ela pensou enquanto ouvia os últimos segundos do discurso de Pedro e decidiu dentro de si: quero "defeitos", quero a ousadia de tentar mesmo que possa errar, já chega de não fazer nada, se eu não posso, ele vai poder por mim!
No final daquela segunda-feira, Pedro Porter estava sentado na calçada da casa de esquina contando à Ana tudo o que falara na entrevista e como estava confiante, aliviado de fazer, finalmente, algo memorável. Eles riam e ele dizia que ele podia nem ter passado na entrevista, mas se sentia bem, como um louco, ele ria, pulava e fazia gestos para ilustrar toda aquela bagunça de emoções. Estava sendo um final de tarde bem engraçado, principalmente para Ana, que adorava "situações surpresa". Pananam pananam trim trim, meu celular, meu celular, gritou Pedro! Era Lívia.
- Boa noite Porter, estou ligando para avisar que você começa amanhã na empresa. Esteja às oito horas naquela mesma sala onde foi feita a entrevista. Parabéns.
Dascha Hoppenstedt
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